Eu já sabia!
Antes de dizer o que “eu já sabia!”,
lembro que nada aqui (no MEU blog) tem compromisso com essa coisa sobre-humana
comumente chamada A verdade. Coisa
que, aliás, ninguém conseguiu provar que existe. Escrevo apenas a Minha verdade, e já está de muito bom
tamanho. Se você está lendo isto, é porque quer, mesmo que tenha sido
convidado. Logo, se não ficar satisfeito, feche a aba, coma brioches.
Mas, como eu ia dizendo, eu já
sabia!
Faz tempo que percebi: toda
quinta-feira, mais ou menos ao meio dia, acontece, no saguão aberto do Centro
de Comunicação e Expressão (CCE) da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), uma roda de capoeira. No mesmo espaço também acontece um encontro de
religiosos (aparentemente alunos evangélicos). Os dois grupos normalmente se reúnem um
ao lado do outro, no mesmo espaço, e no mesmo horário.
Sempre achei suspeito o tom
harmonioso daquela convivência; hoje a
casa caiu.
Quando me aproximei da roda (atraído
pelo canto que entoavam, um ponto de umbanda muito emblemático: “Choro o meu cativeiro/ o meu cativeiro/ meu
cativerar”), vi que o negroaltoesguiomestredecapoeira não estava dando a
menor atenção ao que uma mulherbrancaautoaclamadagordaesupostamenteprofessora
tentava falar com ele, e continuava tocando seu berimbau impávido. Ela gritou
pedindo atenção e respeito; ele parou para ouvi-la; ela argumentou ter
reservado o espaço para uma apresentação teatral (muitas pessoas estavam
caracterizadas como integrantes de um espetáculo circense, eu acho); ele disse
que a roda acontece naquele local, às quintas, desde 1987; ela conseguira “uma
autorização, por escrito [ênfase absoluta, silababando], da direção do Centro”;
o negroaltoesguiomestredecapoeira se aborreceu:
“Depois de 400 anos de escravidão
você ainda vem me dizer que a gente tem que sair porque você tem um papel? A
roda tá aqui desde 87. O espaço é da capoeira. Vambora, canta aí, rapaziada!”.
A última frase a mulherbrancaautoaclamadagordaesupostamenteprofessora
ouviu da nuca do negroaltoesguiomestredecapoeira, que já emendava outro canto,
a voz mais alta ainda.
Não adiantou apelar para dissensões
de gênero, nem de peso. A questão tinha sido racializada. E começou o
espetáculo que Gilberto Freyre precisava ter visto...
Alguém representando a direção do
CCE foi chamado. Era outra mulher branca, de olhos claros, e que usava um crachá
pendurado no pescoço, bem à vista. Ela tentou argumentar, mas o berimbau
impávido não parava. O volume do canto, incólume.
Um mulatopossivelmentereligioso
tentava falar no pé do ouvido do negroaltoesguiomestredecapoeira. Sem sucesso.
Uma mulherbaixanegraloura saiu da roda em missão diplomática junto à mulherbrancaautoaclamadagordaesupostamenteprofessora e a
mulherbrancadeolhosclarosecrachánopescoço. Nada feito. Pouco atrás de mim, um
negroquiçáevangélicorastafáridetúnicaegolapólo ensaiava bater palmas
acompanhando o ritmo da música e do jogo. O comando do berimbau mudava de mãos:
assumia um (quase)ariano(sóque)baixinhoeirritadiço.
Não sei se muita gente percebeu quando o negroaltoesguiomestredecapoeira
(que estava de tênis, calça jeans e sem camisa) sentou, tirou os tênis e as
meias, para depois se levantar de um salto, batendo firme com os dois pés ao
mesmo tempo no chão. Atotô, Obaluaê!
O clima esquentava, as certezas de Freyre talvez começassem a derreter...
Diante da indiferença do grupo de capoeiristas, a mulherbrancaautoaclamadagordaesupostamenteprofessora
praguejou e caminhou na direção de seu séquito; a mulherbrancadeolhosclarosecrachánopescoço
se afastou no sentido oposto. O mulatopossivelmentereligioso, que antes tinha
tentado falar no pé do ouvido do negroaltoesguiomestredecapoeira, começava a
dar adeus ao seu pretenso ar de simpática superioridade postulante a branca, e,
visivelmente contrariado, provocava o (quase)ariano(sóque)baixinhoeirritadiço, inserindo um ou outro verso malcriado entre
aqueles que este último puxava e o pessoal da roda acompanhava.
A situação ia ficando cômica, porque esse mulatopossivelmentereligioso
estava então com um violão nas mãos, e, já exasperado, caminhava do seu grupo ao
outro, em vai-e-vem frenético, fazendo pirraça, debochando, fingindo uma calma
há muito perdida, gritando que “capoeira não sabe respeitar”, acusando-os de
intimidação e truculência. Parecia mais um Zé Pelintra mal disfarçado que um (talvez) evangélico. Mas
certamente ele não falaria aquilo, se soubesse quão ofendidos seus – agora –
adversários poderiam de fato ficar com a acusação.
Agora cabe uma pausa na narração. Pensando um pouquinho tudo aquilo ali,
noves-fora, quanto sobra?
Well, para o bom capoeira,
aquele que segue a filosofia por trás daquela luta-jogo-dança de origem africana,
ou afrobrasileira, sei lá!, pouco importa!, de origem negra, enfim, para o bom capoeira palavra é coisa séria.
Assinaturas, certidões, autorizações oficiais, papéis em geral, tudo isso é
irrelevante. A matriz cultural em questão é essencialmente oral. Ou seja, a
palavra falada é a que vale. A honra de uma pessoa está naquilo que ela fala e
cumpre.
Por outro lado, para a cultura branca europeia, grafocêntrica até a medula,
falar só não basta. Tem que existir uma assinatura, uma certidão, uma
autorização oficial, um papel qualquer para dar validade às coisas. Nada
existe, nada é legítimo, nada é verdadeiro se não existe a prova material. No
limite, um papel assinado por uma autoridade dá, por si só, autoridade a seu
portador.
E o que estava rolando ali era exatamente isso: um, o negroaltoesguiomestredecapoeira,
tentando resistir àquela espécie de “grilagem” (na visão dele) pretendida pela
mulherbrancaautoaclamadagordaesupostamenteprofessora; esta, por sua vez,
alegava o absurdo de um grupo de “mal-educados” não respeitar a ordem oficial,
a “autorização, por escrito, da direção do Centro” (tudo naturalizadamente
branco, europeu, grafocêntrico).
Mas, eis que, entre os dois grupos em contenda, ressurge a
mulherbrancadeolhosclarosecrachánopescoço. Mas não vinha sozinha, claro! Vinha
acompanhada de um dos seguranças da empresa de vigilância terceirizada
contratada pela universidade. Colocou o pobre rapaz a par da situação e... suspense...
(pausa rápida: é impossível não lembrar de Lampião versus a volante!!!
Êêê, Brasil... a merda é sempre a mesma, só mudam as moscas.)
Fiquei esperando pra ver qual seria a reação do segurança. Eu não sei se
ele foi instruído a interferir, a tentar retirar os capoeiristas –
indisciplinados invasores, na visão da direção do Centro, ali representada pela
mulherbrancadeolhosclarosecrachánopescoço. Acho que não. Mas pode ser que eu
esteja errado. De qualquer forma, ele fez o mais necessário “para o bem de
todos e felicidade geral da nação”: nada. Ou melhor: ele buscou um bom ponto de
observação – um banco de alvenaria dos muitos que há naquela área – sentou, e
ficou. Quieto, na dele. Eu tenho a impressão de que não é absurda a hipótese de
os dentes dele também terem aprovado tão salomônica decisão.
A esta altura, quem teve a paciência de me ler até aqui já deve estar se
perguntando como é que essa história toda terminou. Se é assim, desculpe, mas
não consigo conter minha decepção... Poxa! Que falta de imaginação! Esse causo
só poderia ter o final que teve, um final bem brasileiro: um tremendo carnaval,
no sentido mais bakhtiniano do termo: subversão da ordem, quebra das convenções
sociais etc, etc, etc...
O grupo religioso teatral (composto por um ou outra mais pretinh@, uma ou
outro mais branquinh@, e a grande maioria muito mestiça) começou a tocar seus
instrumentos e a cantar aos berros, só para atrapalhar o canto do pessoal da
roda de capoeira (com formação muitíssimo parecida: caucasianos rastafáris, arianos
baixinhos, sararás gordos, acho até que vi um nariz meio árabe, sob um par de
olhos bem orientais...). A impavidez do berimbau parecia ter contaminado a
todos aqueles, que batiam palmas cada vez mais forte, cantavam cada vez mais
alto. E que, entre a Casa Grande e a Senzala,
conseguem cada vez mais espaço.
Briga de foice no escuro... Dá pra tornar a fazenda um espaço só? Oxalá!
Fiquei contente com o desfecho. Virei as costas e vim’e’mbora para tentar
escrever isto. O título já estava na cabeça: “Ah, se o Freyre visse...”
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